sábado, dezembro 17, 2005

"O Pólo brasileiro chegou a uma situação limite"


Era a segunda ou terceira vez que eu tentava voltar a treinar depois de meses ou anos parado. Apareci um mês antes do Carioca, totalmente fora de forma. Claudino de Castro Caiado, o "Mestre", me colocou no banco, prometendo uma vaga de titular na próxima competição, se eu voltasse a treinar. Entrei um pedacinho num jogo no Guanabara, não joguei nada, saí. A noite estava fria, todo mundo encasacado. Decidi encerrar de vez meu pálido e há muito já finito projeto de carreira como jogador, até porque o inverno ficava mais forte e ninguém sabia quando seria a próxima competição.

No intervalo entre um jogo e outro um garotinho entrou na água e chutou inúmeras vezes a gol. Fiquei olhando quieto e, como todos em volta, me divertia com a cena. Alguém disse: "é o filho do Perrone". Uma credencial de peso. Anos antes, em todo jogo do Flamengo eu ouvia o comentário: "Olha aí o Perrone, o cara já tem quase 40 , ainda joga muito, mergulha muito, surfa muito e ainda é cascudo no jiu-jitsu". E o menino não parava de chutar a gol. Uma fome de treino que eu nunca tinha visto. Tiveram que tirá-lo na marra da água ara o jogo começar.

Depois do meu fracasso naquela noite fiquei meio rancoroso com as piscinas, como se minha indisciplina fosse culpa delas. Nem jogo assistia mais. Mesmo assim , numa farra ou outra, meus amigos do Fluminense cada vez mais comentavam sobre uma tal Kiko. Explicaram: "o filho do Perrone". Foi quando me dei conta que o novo fenômeno era o garotinho que dava chutes entre um jogo e outro. O menino que aprendeu cedo com o pai que precisaria treinar mais do que todos para ser o melhor é hoje uma das estrelas do Barcelona e da seleção espanhola.

A entrevista abaixo ratifica que Kiko é um fora-de-série muito antes de cair na água. Lúcido, objetivo e extremamente solícito, ele respondeu por email quase no mesmo dia em que enviei as perguntas. Por mais duro que seja o diagnóstico, pessoas com a determinação do Kiko ainda nos permitem acreditar que um dia a situação vai melhorar.

Pólo Ceará: Qual a avaliação que você faz do estágio atual do Pólo Aquático brasileiro?
Kiko: O pólo brasileiro chegou a uma situação limite. Com a atual estrutura é impossível fazer muito mais do que vem sendo feito. A tendência é que a diferença para as principais potências aumente cada vez mais.

Pólo Ceará: Há algo de concreto sendo feito hoje em dia que possa gerar uma expectativa de algum dia o Pólo Aquático brasileiro chegar ao nível do europeu?

Kiko: O apoio do COB pode ser o primeiro passo. Na maioria dos países desenvolvidos a ajuda do Comitê Olímpico é uma das principais fontes de renda das federações. Contribuindo com a CBDA, além de aumentar o volume de dinheiro no esporte, o COB também passa a ter o direito de exigir resultados e prestação de contas.

Além da ajuda do COB, são necessárias algumas mudanças estruturais para que o esporte deixe de ser tratado como uma paixão e evolua. É indispensável passar a uma estrutura profissional. Escolher um gestor capacitado e bem remunerado, que tenha total autonomia para contratar pessoal, estabelecer um plano estratégico com prioridades, objetivos e metas negociados com a CBDA e patrocinadores e decidir como a verba destinada ao pólo aquático vai ser gasta para atingir esses objetivos e metas, sendo auditado e cobrado durante o ano em função disso.

Enquanto a estrutura for composta de algumas pessoas não remuneradas e outras mal remuneradas, às quais nada pode ser cobrado, vai ser muito difícil executar as mudanças necessárias. Para ver um exemplo disso, não é preciso ir ao exterior, basta ver o caso do voleibol.

Seria fundamental também que houvesse um conselho para estabelecer os objetivos de longo prazo, as políticas do pólo aquático, e acompanhar o trabalho do gestor profissional, para que as decisões principais não fiquem dependendo de apenas uma pessoa.

Pólo Ceará: Você considera viável a massificação do Pólo Aquático no Brasil? A Liga Nacional seria uma utopia?

Kiko: Eu acho que a massificação do pólo, não só no Brasil como na maioria dos países, é bastante complicada. Sem dúvida teria que aumentar bastante o número de praticantes, mas acredito que mesmo sem um grande número de jogadores é possível chegar a um nível bem alto.

A Espanha quando chegou a sua primeira final de mundial, em 1991, só contava com jogadores de Barcelona e de Madrid. Além disso, o número de praticantes do esporte não superava 2 mil jogadores. É claro que quanto mais jogadores melhor, mas também dá pra evoluir bastante a partir de um número razoável de atletas.

Independentemente do tamanho da liga, ou do número de divisões existente, seria muito importante que a confederação em conjunto com as federações estaduais elaborassem um calendário em que os atletas se mantivessem em atividade o ano inteiro. Esse ano se jogou o Estadual carioca, João Havelange e a Taça Brasil ao mesmo tempo, enquanto durante grande parte do ano não teve atividade nenhuma para os atletas adultos. Aqui na Europa dificilmente um jogador de seleção fica mais de um mês sem jogar. As férias aqui normalmente são em agosto (auge do verão) e depois disso sempre tem 1 ou 2 jogos por semana.

Pólo Ceará: O tamanho dos jogadores de seleções como Sérvia e Montenegro e Rússia é sempre muito comentado. Você não é um cara tão grande e consegue se manter sempre em destaque, mas é sabido que você é uma exceção. Como você vê a influência desse componente físico?

Kiko: Em determinadas posições, como centro e marcador de centro, é muito importante o tamanho e a força do jogador. Mesmo nessas posições existem exceções.

Existem poucas seleções maiores que a holandesa ou a australiana, assim como é difícil encontrar times mais baixos que o da Grécia e o da Espanha, no entanto os baixinhos sempre acabam melhor colocados que os gigantes.

Eu acredito que vários fatores fazem com que um jogador se destaque: inteligência, velocidade de raciocínio, preparo físico, qualidade do chute, tamanho, força, etc. O tamanho ajuda mas não é determinante.

Pólo Ceará: Quem você destacaria como melhor do mundo hoje?

Kiko: O húngaro Tamas Kasas. Ele é um jogador completo que joga e faz toda a sua equipe jogar bem.

Pólo Ceará: Como se divide a sua rotina atual de treinos? Você está numa condição de treinos considerada ideal ou ainda há países com treinamento mais avançado?

Kiko: No clube a gente joga todo sábado e algumas quartas-feiras, por isso os treinos mais fortes geralmente são de segunda a quarta. Treinamos todo dia de 12:00 às 14:00 e 20:00 às 22:00, menos na quarta-feira de noite. Nadamos uns 3 mil metros 4 a 5 vezes na semana e fazemos musculação 2 a 3 vezes na semana. Na maioria das terças e quintas fazemos coletivo.

Na seleção a coisa é mais puxada. Como o objetivo geralmente é um torneio de uma semana, o treinamento pode e deve ser mais puxado. Treinamos todos os dias de 9:00 às 12:00 e de 16:00 às 18:00 menos domingo que é folga. Fazemos musculação 4 a 5 vezes na semana, nadamos 6500 m a 7000 m, 3 a 4 vezes na semana e fazemos trabalho de força dentro d´água 3 a 4 vezes na semana. Chute a gol tem todo dia e treino tático também.

O profissionalismo permite fazer dois treinos fortes por dia durante todo o ano. Os exercícios que realizamos aqui não são diferentes dos que são feitos no Brasil, a grande diferença na verdade é o número de partidas de alto nível que se joga, distribuídas ao longo do ano.

Pólo Ceará: Como se divide a sua dedicação ao Barcelona e seleção espanhola e qual a expectativa de ambas as equipes para as próximas competições?

Kiko: Dedico-me ao Barcelona entre setembro e início de maio e à seleção da segunda metade de maio até o final de julho.

Os objetivos do Barcelona este ano são chegar entre os 3 primeiros da liga espanhola e fazer bons jogos no Europeu de clubes. Este ano o time do Felipe, Barceloneta, é o grande favorito aqui.

Na seleção o objetivo é conquistar medalha na Copa Fina e no Europeu.

Pólo Ceará: O que mais mudou nos jogos com as novas regras?

Kiko: A parte física ganhou ainda mais importância. Quem não estiver em forma não agüenta o ritmo.

Pólo Ceará: Você acredita que a sua participação, a do Felipe e de outros brasileiros e brasileiras que atuam no exterior contribuam para dar mais credibilidade ao Pólo Aquático brasileiro fora do Brasil?

Kiko: Eu acho que sim. Quando eu vim pro Barcelona os caras diziam “Pelo menos a gente vai se divertir jogando futebol com ele”. Hoje em dia o pessoal já leva mais a sério e alguns treinadores me perguntam se tem brasileiros com nível e disposição para jogar na liga espanhola. Além de mim e do meu irmão, o Gabriel já jogou aqui e atualmente estão jogando o Marcelinho goleiro e o Charuto.

Pólo Ceará: Há inúmeros jogadores de futebol brasileiros no exterior. Até jogadores de basquete para a NBA já estamos exportando. Esse movimento acontece mesmo entre atletas de países mais desenvolvidos. Você acha que a sua saída e de outros atletas do Brasil e posterior nacionalização se devem a um processo natural de atração dos jogadores de elite para os grandes centros ou há de fato uma omissão por parte dos órgãos responsáveis?

Kiko: Eu acho que isso varia dependendo da modalidade e do atleta. No meu caso, a opção de jogar pela Espanha foi por causa da falta de perspectiva de uma evolução significativa do pólo aquático brasileiro em um curto e médio prazo.

Pólo Ceará: O Quito (atleta da seleção brasileira)disse num comentário aqui nesse blog que você é o melhor jogador brasileiro de todos os tempos. Muita gente de peso compartilha dessa opinião. Como você encara isso?

Kiko: Eu acho que isso de “melhor de todos os tempos” complicado. É impossível comparar jogadores de épocas distintas. O Eric Borges por exemplo jogou 4 anos, como estrangeiro, na liga italiana que é a mais forte do mundo. O Daniel Mameri entre 1994 e 1998 teria vaga de titular em qualquer time de ponta aqui na Europa, o Fernando Carsalade também. O meu irmão se já não é melhor agora, dentro de muito pouco tempo será claramente superior e muito mais completo do que eu como jogador. Isso sem contar os jogadores que eu não vi no auge da forma.

Pólo Ceará: Seu pai, Ricardo Perrone, foi um craque de Pólo Aquático e de outros esportes. Sua família inteira é dedicada aos esportes. Que peso teve esse apoio para você se tornar o craque que se tornou?

Kiko: Isso foi fundamental. Tanto meu pai como minha mãe sempre nos deram todo o apoio na prática esportiva. Eles conseguiram passar pra gente o amor pelo esporte sem cobranças nem pressões. A gente sempre treinou única e exclusivamente porque a gente ama jogar pólo aquático. O pior castigo lá em casa era ficar sem treinar.

Eu também tive a sorte de ter o Carlos Carvalho de técnico durante praticamente todos os anos que eu joguei no Brasil. Ele entende muito de pólo e tem uma característica que eu considero fundamental para ser treinador no Brasil, é um completo apaixonado pelo esporte.

Pólo Ceará: Seu pai sempre enfatiza a necessidade da disciplina, de treinar muito. Você sempre nadou muito, treinou mais do que os demais. Essa é a dica que você dá para quem estiver começando?

Kiko: Meu pai sempre disse, “Quer ser melhor do que os outros? Então tem que treinar mais que os outros”. Tudo que eu conquistei no pólo aquático se deve a minha dedicação aos treinos.

Durante alguns anos no Guanabara, o Barriga (Ricardo Alvarez de Sá) foi diretor do clube. O treino acabava às 21:30 e ele proibia que apagassem as luzes e tirassem o gol antes das 22:30. Além de cair na água pra ensinar a gente a chutar, ele convencia o Pará, já goleiro da seleção brasileira a agarrar os chutes de 3 moleques, dois de 14 anos (eu e o Beto Seabra) e um de 17 (Michel Vieira). Acredito que esses treinos foram fundamentais pra nosso desenvolvimento como chutadores. Até hoje eu sempre sou um dos últimos a sair da água. Aqui em Barcelona, na minha primeira temporada, acabava o treino e eu ficava chutando sozinho a gol, sem goleiro.

Além disso, é muito importante sempre estar aberto a críticas e escutar a opinião e conselhos de todos. Quanto mais pólo você puder ver melhor. Eu ia a todos os jogos que podia e tinha uma coleção de vídeos de pólo que vi tantas vezes que cheguei a decorar cada lance.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Grande entrevista. Kiko não chegou onde chegou à toa.

17 dezembro, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Mais uma vez, parabéns, Hélcio!!!
Excelente entrevista!!

18 dezembro, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Excelente entrevista.
Mostra o excelente atleta e pessoa humana que é o KIKO PERRONE.
Ainda lembrando do tempo do Guanabara.
parabéns

19 dezembro, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Este é o melhor blog de polo aquático que conheço. Entrevista super profissional!
O Kiko é um exemplo para a garotada que está começando. Não estou me referindo apenas ao polo, mas a qualquer esporte. O cara é um atleta de verdade.

20 dezembro, 2005  
Anonymous Anônimo said...

Estou começando a treinar agora. Sei que nunca vou ser um Kiko. Mesmo assim as palavras deles me motivaram a treinar mais.

20 dezembro, 2005  
Anonymous Anônimo said...

como ele mesmo disse : "melhor jogador da história do pólo aquático brasileiro , tavez não " , mas com certeza está entre os 10 melhores , junto com léo vergara ( léo paraíba) , pará , daniel mameri , solon , duda , seu irmão felipe perrone , eric borges , sula ( filho de bezerra da silva ), carlinhos carvalho !! mas eu posso dizer que é o mais humilde deles portanto para mim é o melhor atleta de pólo aquático da história desse país !!! volta kiko , nem que seja daqui a 10 anos !! sem você e felipe o brasil vai passar mais 24 anos longe de uma olímpiada !! parabéns pelo ser humano que você é !! do seu amigo marcus boulitreau !!!
marcusboulitreau@ig.com.br

21 dezembro, 2005  

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